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  • Luís Henrique Pedroso

VENEZUELA: UM GOVERNO SEM ESTADO, UM ESTADO SEM GOVERNO


Um Estado sem governo e um governo sem Estado.


Aos nossos olhos os venezuelanos perdem peso, cor, dignidade e esperança. Aos olhos do mundo, a Venezuela perde suas instituições, leis e identidade. Em média, cada venezuelano perdeu 11kg de peso corporal no ano de 2017[i], quando também foi relatado o espantoso número que se aproxima de 300 mil crianças em risco de morte por mal nutrição. As frágeis instituições venezuelanas são incapazes de fornecer ambiente jurídico e político para governabilidade, seja de Nicolas Maduro, seja de Juan Guaidó. Com feições de um petro-state[ii], é como se a Venezuela refletisse um esquisito arranjo de Estado sem governo e um governo sem Estado. São dias de exaltados discursos, sérias ameaças e insegurança generalizada, sendo a principal, possivelmente a alimentar. O futuro do país reside nas ações a serem tomadas pelos atores mais diretamente envolvidos – Nicolas Maduro, Juan Guaidó, Donald Trump, Vladimir Putin, Li Keqiang, Miguel Díaz-Canel e Jair Bolsonaro.


Os parágrafos que seguem expõem, brevemente, alguns dos elementos que levaram ao quatro atual da Venezuela, bem como suas implicações para a insegurança regional e internacional. Em uma tentativa de interpretar os fatos e pensar alternativas para o futuro do país, são propostos quatro cenários e apontadas algumas conclusões.



Pavimentando o atual cenário de crise e (des)esperança



Observamos, recentemente, o esfacelamento das estruturas de sustentação do Estado venezuelano, tais quais os seus eixos energético, político, securitário e ideacional, bem como sinais de tensões e rupturas na teia de relações estratégicas construídas ao longo das últimas décadas para sustentar a inserção internacional da Venezuela. No eixo econômico, com os EUA, no alinhamento pragmático com a Rússia e China, na inteligência solidária com Cuba e na parceria estratégica com o Brasil dos governos Lula e Dilma. Em relatório divulgado pela Cepal em 2015 – último com dados minimamente confiáveis – a dívida externa bruta venezuelana estava na casa dos USD139 bilhões, e grande parte dos títulos dessa dívida são de posse de fundos de investimentos que operam em Wall Street. Com as sanções econômicas do governo de Donald Trump, a situação econômica da Venezuela piora ainda mais rápido e grandes credores pressionam de todos os lados por medidas que minimizem seus prejuízos. O mesmo fazem Rússia e China, os dois maiores credores da Venezuela e aliados econômicos, políticos e militares. Ao passo que o Washington fechou as portas, Caracas buscou em Moscou e Pequim os financiamentos necessários para movimentar sua economia. Aproveitando a vulnerabilidade de Maduro, ambos países negociaram acordos favoráveis aos seus interesses, mas sentem agora dificuldade em cobrar Caracas e apesar dos discursos pró-Maduro, não ignoram outras vias para garantirem os retornos do que investiram no maior aliado sul-americano. Pragmatismo.


Diferentemente do ocorreu durante os governos Chávez e Lula/Dilma, a partir de 2013 há um relativo afastamento entre Brasil e a Venezuela de Maduro. Muito em consequência da inabilidade política de Maduro e suas diversas ações antidemocráticas, mas também em virtude dos diversos problemas domésticos enfrentados pelo Brasil, imerso em sua própria crise econômica e política. Alguns aspectos estruturais (processos de desindustrialização) que, combinados, com outros conjunturais e circunstanciais internos e externos (forte queda no valor do mercado de hidrocarbonetos, expansão de uma direita ultranacionalista), estrangularam o socialismo do século XXI amplamente difundido na América do Sul nos anos 2000 e abraçado por Chávez e Maduro.


O caminho percorrido pela Venezuela nas últimas décadas e que a levaram para a situação atual pode, muito simplificadamente, ser descrito como: 1) abundância de um recurso natural: petróleo; 2) baixíssimos investimentos em outros setores produtivos, com exploração e dependência apenas de petróleo, tendo quase 100% das suas exportações e 50% do seu PIB derivados do petróleo e gás; 3) queda no preço internacional do barril de petróleo, diminuição considerável na arrecadação de recursos, manutenção de um regime de governo populista com enfraquecimento das instituições democráticas de poder; 4) hiperinflação, governo autocrático e crise humanitária devido ao desabastecimento geral de bens e produtos no país. Esse cenário leva ao assustador êxodo venezuelano atual, visível nos números: o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) prevê cerca de 5.3 milhões de refugiados venezuelanos até o fim deste ano. São números de proporções similares ao que observamos no Oriente Médio. É a maior movimentação forçada de pessoas na história da América Latina. E os impactos disso para a segurança regional e internacional são grandes, como veremos a seguir.


Para avançar na análise, porém, torna-se míster lembrar dois conceitos da ciência política e das relações internacionais, o de Estado e o de governo. A teoria Weberiana sublinha três elementos: população, território, e governo soberano, este possuidor do uso legítimo da força. Porém há, ainda, em uma concepção mais moderna e derivada do artigo primeiro da Convenção de Montevideo (1933), que destaca a capacidade necessária de um Estado em entrar em relações com os demais Estados, ou seja, há que se considerar o reconhecimento de outros atores do Sistema Internacional. Por governo, entendemos o titular do poder do Estado, como estrutura e função. O reconhecimento de um governo é, similarmente, através do controle da máquina do Estado e do cumprimento das normas internacionais. Neste ponto, reside um dos elementos essenciais para compreensão do atual momento da Venezuela: além de uma parcela da população venezuelana, incluindo grupos de militares, a comunidade internacional passa a reconhecer e legitimar Juan Guaidó como presidente interino do Estado. Ao declararem, ainda em 2018, ilegítimas as eleições presidenciais na Venezuela, membros da comunidade internacional[iii] não reconhecem como legítima a posição Nicolas Maduro. Assim, quando o líder da Assembleia Nacional se declarou Presidente interino com base nos artigos 233, 333 e 350 da Constituição venezuelana, mais de 50 Estados passaram a reconhecer a Assembleia Nacional, representada na figura do seu líder, como a instituição responsável pelo governo do Estado venezuelano.


E qual o impacto disso? Ao receber tal reconhecimento, governos estrangeiros, organismos internacionais e corporações privadas passam a negociar contratos com a Assembleia Nacional, chefiada por Guaidó. Como consequência, a perda de poder econômico resulta no enfraquecimento político da liderança de Maduro. Este, por sua vez, alega interferência externa em questões domésticas e demonstra zero interesse em deixar a Presidência. Contando ainda com forte apoio dos militares “em casa” e com as constantes defesas da Rússia, China e Turquia nos fóruns internacionais, Maduro vai estendendo seu mandato, deixando o continente e o hemisfério tensos com os cenários que se apresentam para o futuro.


Segurança regional, internacional e cenários



A crise na Venezuela é um problema regional e apresenta desafios para todos países da região. Pirataria, terrorismo e desestabilização político-administrativa assombram Colômbia, Peru, Brasil e pequenas ilhas caribenhas, os mais diretamente ameaçados pelas ondas migratórias, mas também os Estados Unidos, segundo maior destino dos pedidos de asilos de venezuelanos. Naturalmente, o aumento no número de pessoas cruzando as fronteiras sobrecarrega estruturas públicas de saúde, saneamento e segurança. Se em países mais desenvolvidos isso já seria um problema, imaginemos no Brasil ou na Colômbia. A possibilidade de desestabilização regional não deve ser ignorada, inclusive nas atuais negociações entre o governo colombiano e as FARC. Outro problema crescente de segurança é o aumento nos casos de pirataria reportados na costa venezuelana, que triplicou desde 2016, segundo dados do Oceans Beyond Piracy. Os relatos incluem atos criminosos cometidos por membros das Forças Armadas e Guarda Costeira, que estão entre os milhões de cidadãos venezuelanos atingidos pela hiperinflação e desabastecimento. Há, ainda, frequentes relatos da presença de membros de grupos terroristas em certas áreas da Venezuela, o Hezbollah entre eles.


Com base nos acontecimentos que levaram a Venezuela até o atual momento, os riscos presentes para a região e análise das possibilidades, podemos prospectar alguns cenários:


Cenário um, transição pacífica para a democracia: a deposição pacífica de Nicolas Maduro, ou, apesar de improvável, uma possibilidade, a renuncia de Maduro transferiria a liderança do governo para o líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó. Seriam, assim, convocadas novas eleições presidenciais com a presença de observadores internacionais. A resistência demonstrada por Maduro desde 10 de janeiro, quando assumiu o novo mandato, e o fortalecimento das milícias chavistas são sinais da improbabilidade desde cenário. No entanto, a crescente pressão internacional e o isolamento do regime Maduro permitem considerar este cenário como possível e, sem dúvidas, o mais desejado.


Cenário dois, golpe militar: as Forças Armadas tomarem o poder de Maduro para convocarem uma nova eleição presidencial ou para manterem indefinitivamente seus privilégios, obtidos, principalmente, desde o início do governo de Hugo Chávez. Se por um lado seria um retrocesso na história da democracia venezuelana, conquistada em 1958 e embasada pelo pacto de Punto Fijo, por outro, seria a quebra definitiva do modelo de democracia vivenciado desde a primeira eleição de Chávez. O Zimbábue pós-Mungabe se encaixa como exemplo das consequências deste cenário: sai o líder, permanece o modelo de governança.


Cenário três, guerra civil: sem participação externa, as forças de Maduro (Forças Armadas e milícias) enfrentam os movimentos de oposição nas ruas em possíveis conflitos armados. O fortalecimento da oposição (Assembleia mais unida e grupos dissidentes das Forças Armadas), torna a situação diferente se comparada aos violentos embates ocorridos em 2017, quando as forças de Maduro saíram “vitoriosas”. Caso Maduro venha a suprimir os opositores, haverá a continuidade das políticas autoritárias que levaram a Venezuela ao atual momento de desabastecimento, calamidade na saúde pública, insegurança alimentar e êxodo. Caso as forças de oposição consigam derrubar Maduro, há, ainda, duas possibilidades: os militares dissidentes assumirem o poder e convocarem novas eleições ou permanecerem no poder; e os civis, possivelmente o líder da Assembleia Nacional, assumir o poder e convocar novas eleições (ou não!).


Cenário quatro, intervenção militar estrangeira: em defesa aos movimentos externos, as forças de Maduro engajam em conflito armado com apoio das Forças Armadas e milícias e legitimados pela ameaça externa que se apresenta na forma de intervenção estrangeira. A insistência dos EUA e de muitos membros da comunidade internacional pode fornecer os elementos e justificativas necessários para que Nicolas Maduro convoque as Forças Armadas, ainda leais, para defenderem os interesses nacionais e a própria independência do Estado. Brasil e Colômbia em um primeiro plano, Chile, Peru e Argentina em um segundo, surgem como possíveis membros de uma coalizão militar para intervir na Venezuela com o apoio – direto ou indireto – dos Estados Unidos. Estes, por sua vez, não descartam intervenção militar própria, porém não são poucos os “contras” para uma nova ação militar dos EUA na América Latina. Contudo, um detalhe relevante pode escalar uma eventual intervenção norte-americana: Maduro rompeu as relações diplomáticas com os EUA enquanto os EUA mantiveram as prerrogativas diplomáticas com a Venezuela, inclusive com a manutenção do embaixador venezuelano em Washington. A implicação direta é que em caso de qualquer ataque à embaixada dos EUA em Caracas será considerado um ato de guerra perante o Direito Internacional e uma resposta dos EUA deixa de ser intervenção e passa a ser retaliação[iv].



Conclusões



Reestabelecer alguma forma governabilidade na Venezuela é essencial para interromper a crise humanitária que ameaça a estabilidade regional. Neste processo, observamos – uma vez mais – a inércia e inabilidade das Nações Unidas e do Conselho de Segurança da ONU em mediar as negociações ou propor resoluções para devolver a esperança e dignidade ao povo venezuelano. Percebemos, em um contexto geopolítico mais amplo, a tentativa de reposicionamento global da Rússia e China que pragmaticamente defendem seu aliado Latino Americano e seus interesses em manter e recuperar os investimentos e acordos feitos com Maduro, ao passo que Trump, Pompeo e agora Elliott Abrams, insistem em reafirmar o poder da “Great America” no seu quintal. Não será através do discurso do “nós contra eles” a solução para a crise venezuelana, e isso a União Europeia já deixou claro ao se colocar de sobreaviso, mas sem ações responsivas de fato. O mesmo parece ser das posturas brasileira e colombiana, que observam, seja por incompetência ou impotência as tensões aumentarem no vizinho e não tomam qualquer atitude.


Embora muitos Estados já tenham retirado seu reconhecimento ao governo Maduro, além da Rússia e da China, México e Uruguai também seguem reconhecendo o presidente eleito em Maio de 2018. Estes podem assumir papel central na resolução das atuais tensões e evitar, assim, uma guerra civil, um golpe militar ou intervenção estrangeira. Os exemplos dos anos 1980 na América Central (Nicarágua, El Salvador e Guatemala) demonstram ser possível uma resolução pacífica em um fórum multilateral, mas para isso, as partes envolvidas precisam reconhecer o governo de Maduro como um player e se o fazem, o que resta para Guaidó? Um imbróglio para a comunidade internacional e um prato cheio para muitos tweets nas próximas semanas.




[i] http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-02/pesquisa-aponta-que-64-dos-venezuelanos-perderam-11-quilos-por-falta


[ii] Karl, Terry Lynn (1947) The Paradox of Plenty: oil booms and petro-states. University of California Press: Berkeley.


[iii] Estados Unidos, membros do chamado Grupo de Lima, principais potências da América Latina e que inclui o Brasil, e outros países caribenhos membros da Organização dos Estados Americanos (OEA).


[iv] Isso porque quando os EUA mantém as prerrogativas diplomáticas, segue em vigor a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.

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